entre traços desvanecentes: Ryūseki (2010), de Mariko Asabuki
Pretendia começar meus registros de impressões de leitura neste blog com os dois livros do Kōbō Abe que li recentemente, já que é daí que vem o título Parede, mas o tempo foi passando sem que me decidisse quanto a o que e como escrever. Nisso acabei lendo um outro livro e nesse ímpeto de ter terminado a leitura resolvi escrever sobre ele aqui, pois vi também nele elementos de "parede".
Ando interessado em ler algo da Mariko Asabuki desde o ano passado, quando vi seu nome entre os textos de homenagem a Kenzaburō Ōe nas revistas literárias. Entre essas homenagens há um diálogo entre Asabuki e o escritor Masahiko Shimada que me chamou a atenção para o nome dela. Na semana passada peguei este livro emprestado da biblioteca e finalmente comecei a ler, terminando hoje cedo. Asabuki nasceu em 1984, e 流跡 (Ryūseki) é sua obra de estréia, um conto longo/novela publicado originalmente na edição de outubro de 2009 da revista literária Shinchō e editado como livro em 2010 pela editora Shinchō. É, assim, seu primeiro livro, pelo qual recebeu o Prêmio Literário Dumago. A edição de bolso saiu alguns anos depois, reunindo "Ryūseki" e mais um conto, que espero ler assim que encontrar o livro em alguma livraria.
Citei até agora o título em japonês porque não encontrei ainda uma tradução satisfatória para o título, mas seria algo como "Vestígios em fluxo", título que evidencia o lado meta-narrativo, penso eu, do texto. Porque este livro inteiro, de umas 100 páginas mas com linhas relativamente espaçadas, é marcado pela instabilidade da matéria, pelo fluxo constante das frases e linhas e a transitoriedade dos poucos vestígios (letras?) que passam nesse fluxo. Foi uma leitura difícil, principalmente porque é a linguagem que acaba ficando em primeiro plano: palavras e grafias não-habituais foram os "vestígios" mais ásperos, resistentes, que topei enquanto lia, ainda mais porque precisava consultar o dicionário constantemente. Nesse sentido não foi uma leitura tão agradável quanto teria sido se eu conseguisse apenas acompanhar o fluxo sem me deter tanto na opacidade dos vestígios.
A linguagem está em primeiro plano, mas há também "histórias" que se formam, ou tentam se formar, nesse fluir das letras. Elas também como que se dispersam uma na outra: um barqueiro que trabalha à noite transportando seres humanos, não humanos, coisas; um pai de família que alucina com uma chaminé refletida numa poça de água e cogita se não seria seu próprio crematório; uma mulher numa ilha abandonada esperando um navio que não vem… Os estados físicos da matéria, da água especificamente, são recorrentes, assim como a temática da morte: esses personagens todos (que talvez sejam um mesmo personagem - a narrativa é em primeira pessoa mas não há uso de "eu", antes "este corpo", e os próprios personagens imaginam essa dispersão) parecem desejar se tornar matéria: sumir na água, virar fumaça. Só que constantemente voltam a tomar forma, esses vestígios inevitáveis no fluxo de uma escrita infinita, nota na qual o livro acaba - sem que por isso se possa dizer que a história terminou.
Com as particularidades desta obra que tentei explicitar de algum modo aqui, é difícil falar sobre ela em si: se o que está em primeiro plano é a linguagem, o principal interesse da obra esta na experiência de sua leitura, que não seria possível reproduzir de outra forma. E a tradução? Pois é, é uma dessas obras artísticas, de linguagem poética, estilizada, freqüentemente particularizada (referências a trajes de dança tradicional, nomes de espécies de peixes, algas), com kanjis incomuns, que me fizeram questionar a todo tempo se seria possível traduzir algo assim, reproduzir essa "experiência de leitura" de algum modo. A tentativa de resumir as coisas, pessoas ou não, que esses vestígios sugerem, não chega a ser satisfatória. E muito do texto está nas incertezas nos pensamentos da voz narrativa. Sobre a possibilidade de tradução não tenho respostas - a única resposta possível seria, talvez, tentar. O que, pelo menos, a leitura deixou evidente é o domínio que Asabuki tem da língua japonesa (na época em que escreveu o texto ela era doutoranda pesquisadora de kabuki pré-moderno, segundo os dados biográficos no livro), cujos rumos em outras obras espero acompanhar em breve.